A discriminação tem sexo, tem cor, tem classe, tem idade e território.
Nesse dia em que se comemora a luta das mulheres por igualdade de direitos e justiça de gênero, compartilhamos o texto Nós, Mulheres da Periferia, Ianca Pedrina, Jéssica Moreira, Mayara Penina, Semayat Oliveira, Patrícia Silva, publicado na seção Opinião da FSP, no dia de ontem. As autoras são jornalistas e estudantes de jornalismo, moradoras de diferentes bairros da periferia de São Paulo e correspondentes do blog Mural da FSP.
Nós, mulheres da periferia
Se a periferia tivesse sexo, certamente seria feminino. Como coração de
mãe, ela abraça os seus filhos sem distinção, sem ver se é belo ou feio, dentro
ou fora dos padrões.
No dicionário, periferia é a região mais afastada do centro. Um termo que
designa apenas um espaço geográfico, não o pior lugar da cidade.
Em São Paulo, há mais de 650 mil mulheres vivendo na periferia -e presentes
em toda a cidade, trabalhando, estudando e saindo com os amigos. No Brasil,
quase 22 milhões de mulheres são chefes de família.
E para quem é considerada uma favelada, alcançar o ensino superior é quase
impossível. É como se ela nascesse com seu destino determinado. Jamais vai ter
dinheiro para pagar a universidade e a escola pública não vai prepará-la.
Mas agora, belas, agressivas, cheias de gana e autoconfiança, essas
mulheres estão driblando as dificuldades para ascender socialmente. Passaram a
incluir mais uma atividade em sua dupla jornada, que se tornou tripla, pois
também estudam.
Hoje, mais do que nunca, mães que não tiveram oportunidades de ensino podem
sonhar com o estudo dos seus filhos. Na periferia, a mãe tem orgulho de dizer à
patroa que seu filho "fez faculdade".
Não que o diploma de ensino superior tire a sensação de ser marginalizada.
"Ela é formada, mas não na USP. É uma ótima profissional, mas mora muito longe."
Essa é a realidade de muitas das 3,6 milhões de brasileiras que fazem faculdade.
Situação que apaga e esconde diversas características da população que está
longe dos grandes centros. A periferia tem, sim, pessoas interessadas em arte,
moradores engajados em movimentos sociais e políticos que querem mostrar a
pluralidade deste "outro mundo".
Yhorranna Ketterman, moradora de Taipas, zona norte de São Paulo, é um
exemplo. Ficou grávida aos 17 anos. Sugeriram que ela abortasse, ela recusou.
Aos 28 anos e com dois filhos, Yhorranna sonha com uma casa, pois vive em uma
moradia irregular. Na favela onde mora, os becos são apertados. Ao abrir a
porta, só vê casas coladas -ao menos pode pedir para a vizinha ficar de olho nas
crianças quando vai trabalhar.
Ela é metalúrgica e se separou do marido depois de uma briga que a deixou
com o dedo torto. Já apanhou, mas também bateu. Como mulher forte que é, decidiu
fazer a operação para não ter mais filhos, encarando o machismo do então
parceiro, que não quis fazer a vasectomia.
Sozinha e chefe do lar, Yhorranna manda na sua vida.
Não basta, no entanto. Quem de nós nunca ouviu a famosa afirmação: "Você
não parece que mora na periferia." Bom, até onde sabemos e vemos, as mulheres da
periferia não têm apenas um padrão de beleza, não usam as mesmas roupas e não
gostam de um único tipo de música.
Somos negras, brancas, jovens, idosas, mães de outras meninas. Gostamos de
fotografia, balé, funk, teatro. Na entrevista de emprego, o local onde moramos
cria constrangimento. "Sim, tomo ônibus. Trem. Dois metrôs. E ônibus de novo."
No happy hour, é comum escutar: "Lá entra carro? Essa hora é perigoso. Quer
dormir na minha casa?". A resposta é não. Saímos cedo, voltamos tarde, mas
sempre voltamos.
Trabalhamos perto, trabalhamos longe, dirigimos carros, usamos ônibus.
Somos várias, diferentes histórias, o mesmo lugar. É impossível nos reduzir a um
estereótipo.
Com o tempo, a mulher aprende a dizer que seu bairro não é tão perigoso
quanto pregam. Aprende a não ter vergonha de dizer que é da periferia, pois é lá
que estão suas raízes e tudo aquilo que aprendeu.
Ser mulher na periferia é também esperar mais de um mês para ir ao
ginecologista. É não conseguir creche para seus filhos. Mas nada disso intimida.
Nesta semana da mulher, vale lembrar que pobreza maior é não ter espaço para
ser. Na periferia, elas são: mulheres guerreiras.